Archive for outubro \25\America/Sao_Paulo 2009

O risco de vestir a faixa de a mais feliz do mundo

A alegria premiada pode aplacar a indignação?

Lobão* – O Estado de S.Paulo

 – Quando filosofamos sobre uma violência que
assola o Rio de Janeiro há mais de 30 anos e percebemos sua progressão
sistemática durante todo esse período, somos obrigados, em primeiro
lugar, a fazer um exame de consciência e procurar com toda a
honestidade a razão da nossa incapacidade crônica de aprender com os
próprios erros. O que faz uma cidade não conseguir se enxergar? Para
analisar os acontecimentos da semana que passou eu não gostaria de
nivelar a conversa sob a égide da indulgência, do narcisismo, do
bairrismo, da festividade retrógrada nem do cinismo. Uma das causas da
minha retirada do Rio deveu-se justamente ao fato de estar cansado e
constrangido de continuar vivendo num lugar cuja paralisia provocada
pela autocomplacência vinha da sensação de que o carioca é um ser à
parte. Além de me irritar profundamente, isso me transformava num
cúmplice passivo de toda aquela coisa, milimetricamente arquitetada
para aniquilar qualquer tipo de mudança. Afinal eu não via um sinal
sequer em direção a uma transformação relevante de atitude capaz de
apontar para uma radical virada de mentalidade, para uma revisão
completa nessa autoimagem caricata de gente fina, delicada e cheia de
bossa de que tão ingenuamente nos ufanamos a flanar pela zona sul.

Pois
bem, uma jornalista de um jornal carioca, no início de setembro, me
mandou um e-mail pedindo que eu falasse sobre o fato de o Rio ter sido
eleito pela revista Forbes a cidade mais feliz do mundo. "Soube que
você saiu há pouco tempo daqui porque não estava satisfeito… Um
abraço", comentou a jornalista, após o simpático pedido.
Misteriosamente, a matéria implodiu e acabou não saindo nada; portanto,
como desconfio que o ponto gravitacional esteja bem próximo do assunto
abordado neste texto, aqui está a resposta:

"Que bacana!!!
Então, já que deu na Forbes, muda tudo! Eu posso até voltar correndo,
varado de luz, redimido… com o carimbo da Forbes de… FELIZ !!! O
mais feliz do mundo!!! EEEEE! Devemos decretar uma semana de feriado,
convocar uma micareta e fechar a Vieira Souto pra comemorar esse feito!
Mas, falando sério, esse tipo de felicidade me assusta um pouco. Uma
felicidade meio perversa, meio postiça, meio indulgente. Tem uma bossa
nova que eu fiz dizendo mais ou menos assim sobre nossa índole, sobre
nossa paisagem: "Tudo aqui descontroladamente lindo como um gol
acidental… Tão suicida essa forma invertida de felicidade… E a
gente continua comemorando coisa alguma sempre a sorrir".

"Talvez
essa tal felicidade esteja nos condenando à eterna permanência da
precariedade, pois aplaca nossa indignação, estupra nosso luto, mina a
vontade de sermos melhores, impossibilita qualquer tentativa de
engendrar profundas e necessárias transformações da imagem que temos de
nós mesmos e, infelizmente, acaba por facilitar a tal da
autofolclorização, caindo na gratuidade insólita, boba e até cruel da
carnavalização.

"Agora tentem visualizar alguns eventos típicos
e patológicos que costumam permear a maneira de ser de um determinado
tipo de carioca:

1) Aplaudir o pôr do sol no Posto 9 como um
Michelângelo das areias, extasiado com a beleza de sua paisagem
particular, como uma extensão de si próprio, travestindo um êxito
exclusivo da natureza em mérito pessoal.

2) Frequentar passeatas
contra novas regras mais restritivas para o carnaval de rua, mesmo com
a cidade fedendo cada vez mais nos dias de folia.

3) Sair pra brincar nos blocos da vida depois de mais uma chacina.

4)
Possuir um fascínio mórbido pelo fenômeno da reinvenção regressiva,
muito em voga nos dias de hoje, a investir sofregamente na promoção de
festivais como o de marchinhas de carnaval, de uma obsolescência
comovente, em meio a refrões natimortos, rimas anacrônicas, piadas
oligofrênicas e arranjos idiotas.

5) Regurgitar com muita dignidade, chiquê e retrocesso uma bossa nova anêmica, que de nova não tem mais nada, só pose.

6)
Viver na fixação obsessiva e pouco potente do universitário de
esquerda, incapaz de expressar aquilo que realmente é, um invejoso da
singeleza da pobreza, um aspirante a vanguardista de um passado que
jamais vivenciou, um tipo corriqueiro da classe
média/bamba/fake/sambista de araque, a emular grotescamente o bamba
real da tradição, a jactar-se como o legítimo defensor e representante
da raiz, da raça e da cultura, mesmo sem a gente ser planta, não ter
raça nem delimitação pra expressar o que bem entender, ou quem sabe pra
relaxar depois de uma praia, sentar com a rapaziada num fim de tarde
pra levar um lero num boteco da Lapa, em cima de uma poça de sangue,
cujo cadáver acabou de ser removido? Style!

"Se vocês acham
isso uma vantagem, só me resta torcer para que usufruam ao máximo desse
momento de singular alegria. Torço também para que no próximo concurso
o Rio se torne um campeão de gentileza, um lanterninha da violência, um
exemplo de elegância, de qualidade de vida, que sejamos reconhecidos
pela honestidade sem esperteza, por sermos um povo que tenha uma
autocrítica mais severa, um povo de fibra que, sem perder suas belas
características, seja também cosmopolita, apto a se transformar, aberto
para a cultura do mundo, um povo que em sua retumbante alegria seja
menos narciso e, de preferência, mais sério.

"É isso aí. Me
perdoem pela sinceridade e um abraço de um carioca que, mesmo distante,
mesmo discordante, mesmo revoltadíssimo, continua, apesar de não tão
feliz assim, torcendo apaixonadamente por melhores rumos de sua cidade
e de seu povo".

Conheço a alma da minha cidade, amo a minha
cidade e muito me entristece o estado das coisas. Nós cariocas
precisamos urgentemente nos reinventar. E, com mais humildade e
inteligência, construir um destino ensolarado e realmente feliz que o
Rio e o carioca tanto merecem.

*Músico nascido e criado em Ipanema, morador do Sumarezinho, em São Paulo, desde 2008

Soh ao som de James Taylor